Orçamento e Conflito Distributivo
A grande notícia econômica do final de maio foi a nova proposta de orçamento da administração Temer para 2015. Há nessa proposta aspectos estritamente econômicos, políticos e mesmo midiáticos que merecem nossa atenção.
O primeiro fato a se destacar é que o orçamento é uma boa notícia. Depois de semanas de massacre monotemático na mídia das autoridades quanto à necessidade imperativa de cortar gastos, vem a público um orçamento… sem muitos cortes de gastos !! Na verdade quase o oposto, como veremos. Alguém poderia falar em estelionato “não eleitoral”. Afinal, não deixa de ser irônico que o caminho percorrido por um governo não eleito parece ser o oposto de um eleito, unindo-lhes apenas a negação das promessas de “campanha”. Ninguém duvida que a profunda recessão de 2015, e que praticamente se repetirá em 2016, foi elemento chave no processo de Impeachment do Governo Dilma. Para executar um programa de ajuste fiscal com redução real dos gastos públicos, a presidenta Dilma Rousseff chegou mesmo a convocar um economista ortodoxo de mercado com credenciais, quase, imaculadas, somando ao seu projeto de início de governo, política fiscal austera, uma dimensão simbólica: um economista austero.
Como esperado em 2015, o contracionismo fiscal foi contracionista em termos macroeconômicos e caberá à história julgar o papel que tal desastre econômico jogou no processo que afastou a presidenta do governo. Mas como da história retiram-se lições para não se repetir os erros do passado, tudo leva a crer que, fora do campo retórico, os atuais gestores da economia aprenderam a lição.
Mais contracionismo poderia levar a economia para um abismo de proporções inimagináveis, e pior, nem mesmo seria eficaz para os propósitos de ajuste fiscal do governo; as receitas tributárias possivelmente cairiam mais que os cortes de gasto. Entretanto, se é possível que a história possa ter ensinado a equipe econômica do governo Temer a não cometer loucuras, as propostas de médio prazo, ou de ajuste estrutural do setor público, mostram que a tentativa de minimamente legitimar um governo intrinsecamente frágil está associada a uma forte orientação conservadora do novo governo. Estas duas dimensões, o orçamento propriamente dito e as propostas de médio prazo, estão interconectadas, mas para que se possa ter clareza sobre suas especificidades devem ser analisadas individualmente.
O orçamento apresentado guarda algumas semelhanças com aquele sugerido pela equipe anterior em março, como observado pelo próprio ex-ministro Nelson Barbosa, mas é menos contracionista, ou mais expansionista que a proposta anterior.
Um primeiro item importante que distingue as duas propostas seria o de estimativa de receita tributária, ou seja, pode-se dizer que a nova equipe foi mais realista, e previu uma queda maior da receita tributária em função da retração do produto. Afinal, com a arrecadação depende da própria atividade econômica seja através de impostos indiretos sobre produto ou diretos sobre as rendas geradas no período, há uma forte retração simultânea do PIB e da arrecadação resultando, quase que de forma automática, num déficit maior.
A frustração de receita, ou quanto que esperava-se arrecadar e não se espera mais por causa da recessão se elevou em cerca de RS 40 bilhões. Ao ser mais realista em termos de receita o governo, ao mesmo tempo em que se desobriga de cortes adicionais de gasto, com impactos contracionistas sobre a demanda, também se livra dos constrangimentos legais ás despesas que tantos problemas trouxeram a presidenta afastada.
Outra medida importante é a previsão de menores pagamentos por estados e municípios ao governo federal de cerca de RS 20 bilhões que certamente serão importantes para dar algum alívio às combalidas finanças públicas sub-nacionais (estados e municípios).
Finalmente a outra boa notícia é uma ampliação das despesas obrigatórias de RS 28 bilhões que na proposta anterior seriam alvo de diversas formas de contingenciamento.
A reflexão de economia política sobre este orçamento, menos contracionista que a proposta anterior, não pode desconsiderar o maior raio de manobra que governos conservadores tem para realizar políticas não conservadoras.
A repercussão de certa forma favorável da imprensa não causou nenhuma surpresa. Obviamente, que a culpada é o Governo Dilma, ainda que a decisão, adequada, de não fazer um ajuste maior tenha sido tomada por esta equipe. Mas como dito, independente do caráter partidário da nossa imprensa, não é inédito que governos menos conservadores acabem por impor uma restrição fiscal mais rigorosa que governo mais conservadores.
Só para mencionar alguns eventos históricos bem conhecidos, vale lembrar que um dos patronos da ordem noeliberal vigente, Ronald Reagan, expandiu de forma substancial o déficit público Norte Americano através de uma redução da carga tributária combinada com aumento do gasto militar. Ainda em relação aos EUA, a legislação que rege a negociação de autorização do Congresso para elevação de limites do endividamento público só se tornou do conhecimento do público na década de 1990 quando o partido Republicano forçou um “fechamento do governo temporário” (government shutdown) por se negar a subir o teto da dívida. Situação semelhante enfrentada duas vezes por Barak Obama nos seus mandatos. Nos governos Bush, pai e filho, tais decisões não passavam de eventos corriqueiros do congresso, mal notados pela imprensa e o grande público.
Essa é uma condição estruturalmente desigual apenas magnificada pela imprensa partidária brasileira: os conservadores não precisam ser, nem parecer, fiscalmente conservadores. Já os progressistas são naturalmente pressionados para serem fiscalmente “responsáveis”(sic), o que seria uma forma de limitar os avanços sociais que tais expansões fiscais pudessem trazer. Governos progressistas que caem nesta armadilha, como foi o caso da presidente Dilma, em um ambiente de recessão podem acabar ficando sem nada: nem equilíbrio fiscal e nem o próprio mandato.
Entretanto, apesar de uma ampla licença para desrespeitar metas fiscais rigorosas de acordo com as necessidades do ciclo econômico, é importante anotar que elas lá estão, e podem ser usadas a qualquer momento, ou até magnificadas, como parece ser o caso brasileiro atual, para atingir objetivos maiores de economia política. O que parece ser a estratégia bastante clara na atual conuntura.
O déficit primário deste ano pode ser apresentado como um mal necessário e irrecorrível frente à herança maldita do governo Dilma mas que precisa ser corrigido ano que vem. Como o maior componente de dispêndio são as transferências do sistema de previdência e como cresceram os gastos com educação e saúde a solução “natural” passa a ser os cortes nestas despesas. O projeto de congelamento em termos reais dos gastos discricionários vai nesta direção. Aliás, como se espera que em algum momento o PIB volte a crescer, uma vez adotada esta política, a proporção destes gastos no produto cairá tendencialmente. O que seria a verdadeira jabuticaba brasileira: um país que ao se desenvolver tivesse gastos com saúde e educação tendendo a zero em termos de percentual do PIB !
Como estes são bens públicos fornecidos a população, tal redução resulta numa queda do salário real, em sentido mais amplo, do trabalhador. Privado de tais serviços este teria que ou busca-los no setor privado, tendo que reduzir outros gastos menos essenciais, ou simplesmente, passaria a viver com um padrão mais baixo de bem estar.
Se o corte em saúde e educação tem um caráter indireto, as propostas de desindexação da previdência tem um impacto direto sobre as contas públicas e salário real dos trabalhadores, bem como dos rendimentos das camadas mais desprotegidas da população. Como mais de 5o% dos gastos da previdência são benefícios pagos no valor de um salário mínimo e sabendo que esta despesa perfaz algo em torno de 7,5% do PIB o não reajuste seja do piso segundo o mínimo seja do próprio mínimo pela inflação passada, no caso de 2016 algo em torno de 7%, já representaria uma economia substancial para os cofres do governo federal. Esse número é ainda mais expressivo se anotarmos que os benefícios no valor de até dois salários mínimos perfazem um total de 85% dos benefícios da previdência.
Em suma, sob o argumento do ajuste fiscal “necessário” no fundo o que se observa no Brasil é mais um capítulo do conflito distributivo entre rendimentos do capital e salários que historicamente tem garantido vitórias estrondosas ao primeiro. Se o Governo Temer conseguir levar adiante suas propostas de ajuste estrutural, a pequena reversão na primeira década dos anos 2000 terá sido apenas um leve desvio de uma tendência histórica.