Macroeconomia, a falácia do pai de família e a PEC 241
O discurso moralista diz que o Estado, assim como um pai de família, deveria sempre gastar menos do que ganha. Esse discurso acaba por sugerir ao cidadão, leigo em economia, que: 1) é possível a todos os agentes de um sistema econômico ganhar mais do que gastam, e 2) que o Estado apresenta algum tipo de restrição financeira, típica de um pai de família. Esse discurso é falacioso porque, 1) não é possível no agregado de um sistema econômico ganhar mais do que é gasto e 2) o Estado não quebra quando se endivida na moeda que ele mesmo emite, ou seja, na dívida pública denominada em sua própria moeda (reais, no caso brasileiro).
Infelizmente, esse discurso falacioso está ganhando adeptos entre as pessoas que tomam decisões importantes para o futuro do país. Esta retórica chegou a tal ponto que o governo pretende aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição que congelaria o gasto público primário em termos reais pelos próximos 20 anos, permitindo apenas reajustes para recompor a inflação passada. O objetivo desta medida seria, segundo o discurso oficial, de promover um ajuste nas contas públicas.
Essa PEC tem recebido várias críticas, devido ao seu caráter perverso do ponto de vista social, pois impediria o governo de ampliar o conjunto de bens e serviços públicos ofertados à população. Nós endossamos essas críticas, e pretendemos ir um pouco além, mostrando que quando o Estado se comporta segundo esta lógica – como se fosse um pai de família – ele provoca efeitos nocivos sobre a economia.
Lição 1: Em um sistema econômico, o que se gasta é exatamente o que se ganha
Para simplificar ao máximo o argumento, vamos desconsiderar o setor externo, as transferências do governo, bem como supor que todo o gasto público consiste em consumo e que não há variações de estoques. Ressaltamos que o argumento é valido mesmo sem essas simplificações.
Temos então que o produto (PIB) (Y), pela ótica da renda, é igual à soma da massa salarial, deduzidos os impostos (W), da massa de lucros, também deduzidos os impostos (P), e do total de impostos arrecadados (T). Pela ótica da demanda, o produto é igual à soma do consumo das famílias (C), do investimento (I) e do consumo do governo (G) . Por definição, essas duas somas tem de ser iguais. Temos então:
Y = W + P + T = C + I + G
Produto = Renda = Demanda
O que o setor privado “ganha”, no caso, é a soma dos salários e lucros (W+P), e o que o governo “ganha” é o montante de impostos (T). O que o setor privado gasta, por sua vez, corresponde ao consumo mais o investimento (C+I), enquanto que o gasto do governo é o próprio G. Fazendo poucas passagens algébricas a partir da equação acima, chegamos à seguinte expressão para o superávit do setor privado:
(W + P) – (C + I) = G – T
Como (G – T) é o próprio déficit público, isso pode ser escrito, alternativamente:
Superávit do setor privado = déficit público
Isso significa que quando o orçamento do governo é superavitário, o setor privado ganha menos do que gasta, e quando o orçamento do governo é deficitário, o setor privado ganha mais do que gasta. Assim, para que seja possível que o setor privado (o conjunto de empresas e famílias em um sistema econômico) ganhe mais do que gasta, é necessário que o governo gaste mais do que ganha.
A possibilidade de ganhar mais do que se gasta só existe para o indivíduo na suposição de que a sua renda está dada e o indivíduo escolhe o quanto gasta. Entretanto, no agregado, a renda e o gasto são iguais. Sendo assim, num sistema econômico considerado como um todo, não é possível que todos os agentes ganhem mais do que gastam, simplesmente porque, no agregado, o que se ganha é exatamente igual ao que se gasta. Com isso, vemos que é impossível que o setor privado e o setor público sejam superavitários ao mesmo tempo.
Lição 2: Para o nível de emprego, o que importa é o nível de gasto público e não o déficit público.
Para uma dada capacidade produtiva, o nível agregado de gastos destinado à compra dos bens e serviços correntemente produzidos (demanda), medido aos preços normais, determina os níveis de renda, produto e emprego. Este é, de maneira simples e direta, o chamado princípio da demanda efetiva desenvolvido de maneira independente por Keynes e Kalecki nos anos 1930 que estabelece a seguinte relação de causalidade: é o gasto que gera a renda. Esta formulação é válida desde que existam recursos ociosos na economia – isto é, capacidade produtiva ociosa e trabalhadores desempregados.
Por isso, sempre que houver recursos ociosos, o governo deveria elevar o seu nível de gastos induzindo o aumento da renda, do produto e do emprego. Quando o governo eleva sua demanda por bens e serviços, isso aumenta diretamente a demanda da economia e os empresários precisam produzir mais para atender essa demanda adicional do governo. Isso implica que mais trabalhadores sejam contratados, assim como aumenta a demanda dos próprios empresários por insumos diversos, gerando um crescimento da renda agregada maior que o crescimento dos gastos públicos. Um processo inverso ocorre quando o governo corta gasto: isso diminui diretamente a demanda da economia, fazendo com que os empresários precisem produzir menos para atender a demanda do governo que caiu. Isso implica que trabalhadores sejam demitidos, assim como diminui a demanda dos próprios empresários por insumos diversos, gerando uma queda da renda agregada maior que a provocada pelo corte inicial dos gastos públicos. No longo prazo, os empresários ajustam a sua capacidade produtiva para atender a demanda efetiva da economia, que é a demanda que proporciona lucro para eles.
Assim, no início de 2015, ao optar deliberadamente por cortar fortemente os gastos, o governo causou recessão e elevação do desemprego na economia brasileira. Esta recessão reduziu a arrecadação tributária, de forma que o corte de gastos não está provocando uma melhora das contas públicas, pois a arrecadação está caindo mais do que os gastos públicos.
Note que déficit ou superávit é apenas um resultado das contas públicas que não nos diz se o governo está agindo de modo a estimular ou contrair a economia. O que nos diz isso é o que está acontecendo com o nível de gastos do governo, que gera demanda para a economia, e não se ele tem déficit ou superávit.
O atual governo federal afirma que congelar o crescimento real da despesa primária é uma condição para que o país volte a crescer, afirmando que os empresários voltariam a investir, ampliando a capacidade produtiva da economia. Entretanto, não faz sentido algum que os empresários ampliem a capacidade produtiva (invistam) com a demanda pelos produtos deles caindo ou estagnada. Este discurso sem sentido está sendo repercutido e defendido pelos grandes meios de comunicação. Obviamente desde que o governo começou a cortar gastos, o nível de produto (PIB) caiu, o investimento dos empresários caiu mais ainda, e o desemprego subiu. Estes são os efeitos nocivos para a economia que acontecem quando o governo se comporta como um pai de família:
Congelar a despesa primária depois da forte redução dos gastos ocorridos desde 2015 provavelmente vai nos condenar a uma longa estagnação, que sequer garante que haverá uma melhora da arrecadação e das contas públicas. Se quiser melhorar os resultados fiscais, o governo pode recorrer a aumentos de impostos sobre os mais ricos, desfazer as desonerações para as empresas, ou simplesmente melhorar a estrutura tributária, ao invés de cortar e congelar gastos. Não o faz por uma opção política.
Procuramos nesta nota explicar os aspectos mais básicos de como o governo influencia os resultados econômicos. Ressaltamos porém que é preciso o governo enfrentar os reais desafios relacionados 1) ao perfil regressivo da estrutura tributária e das transferências realizadas pelo governo e 2) à estrutura produtiva para que o crescimento da economia brasileira não esbarre na restrição de balanço de pagamentos.