Navegando em Círculos

Em dois textos recentes, CARNEIRO (2017) e CARNEIRO & MELLO (2017), Ricardo Carneiro propõe uma interpretação de por que teria dado errada a condução da economia nos governos Dilma e faz uma proposta de solução do problema da retomada do crescimento. No primeiro texto, faz algumas criticas a SERRANO & SUMMA (2015). Aqui nos parece que vale a pena uma réplica, principalmente porque a proposta de saída da crise atual é surpreendentemente parecida com alguns aspectos da politica que nos levou a crise atual.

O ponto central da discussão está neste parágrafo:

Para tanto, a escolha recaiu na diversificação da estrutura produtiva, para suplantar a especialização regressiva, e na ampliação da infraestrutura, em parte sobre utilizada, em parte sucateada, por anos de baixo investimento. A força motriz principal seria nesse caso, o investimento autônomo, vale dizer, não integralmente induzido pela demanda corrente, mas apoiado diretamente por ações do Estado, seja no intuito garantir o financiamento seja na de alterar os preços relativos, assegurando a rentabilidade dos investimentos. Que tipo de arranjo político demandaria esse novo modelo? Certamente não aquele da conciliação das classes observado nos Governos Lula, durante o qual, por circunstancias particulares, foi possível acomodar muitos interesses. Arbitrar interesses e definir claramente os segmentos que integrariam uma aliança interclassista era crucial. (p.3)

Aqui Carneiro defende a escolha do governo Dilma de abandonar o PAC e o investimento público e também de diminuir a ênfase em estimular a demanda agregada (com gastos públicos, transferências fiscais e redução dos spreads bancários e juros) com o objetivo de induzir o investimento privado, como admite ter sido o caso até 2010.

A argumentação é de que havia se tornado necessário mudar a estrutura da economia e que, para isso, a mera expansão do mercado interno sobre as mesmas bases não seria suficiente. O único problema é que isto não explica por que o investimento público tanto do governo quanto das empresas estatais [1] teria que sair de cena e ser substituído por este “investimento autônomo” privado, especialmente se a ênfase era na infraestrutura e nos investimentos estratégicos em geral, com grandes externalidades positivas para a economia, mas, em principio, de alto risco e baixa rentabilidade privada imediata. O único argumento sobre isso no longo texto está neste trecho:

Vários críticos da política econômica do Governo Dilma, tais como Serrano e Suma (sic) (2015) negam o seu caráter desenvolvimentista. Defendem a tese de que o conjunto de incentivos ao setor, e ao investimento privado, se fizeram em detrimento do investimento público, ou seja, a proposta central deste governo teria sido a substituição do investimento público pelo privado como elemento dinâmico do crescimento. O problema maior desta postulação é que trabalha com a ideia de que o Estado tinha o tamanho e os instrumentos necessário para liderar o investimento. Por outro lado, como veremos, isto não significa admitir que os incentivos dirigidos ao setor privado tenham sido eficazes. (p.16)

Como realmente não sabíamos que o Estado brasileiro não tinha o “tamanho e os instrumentos necessários”, o que nos consola é que o próprio Governo também não sabia ao lançar o PAC e todas as politicas realmente desenvolvimentistas no período 2006-2010, abandonadas uma a uma pelo governo Dilma[2]. Aliás, a melhor performance tanto do investimento quanto do crescimento do PIB nesse período 2006-2010 em que o governo chamou para si a responsabilidade da expansão da demanda agregada em geral e do investimento público e estatal em particular não parece fornecer evidências no sentido de insuficiência de instrumentos, muito pelo contrário.

Como estes instrumentos faltantes não são elencados, só nos preocupa uma passagem mais ao final do texto onde se lê:

Em resumo, sob o impacto dos desequilíbrios de estoques as dívidas voltam a um patamar – 55% para a líquida e 73% para a bruta – análogo ao do final do Governo FHC, reduzindo o espaço fiscal. (p36)

A referência ao tal “espaço fiscal” que, aparentemente, pressupõe que o governo não poderia financiar o investimento público porque a divida pública bruta ou liquida denominada na nossa própria moeda não poderia crescer é preocupante, embora nada surpreendente[3].

O mais interessante é constatar que Carneiro admite que, por motivos que não ficam muito claros, mas que aparentemente têm a ver com “Arbitrar interesses e definir claramente os segmentos que integrariam uma aliança interclassista”, o tal investimento autônomo privado não aconteceu e que os incentivos não funcionaram.

Mas se é difícil escapar da conclusão de que o governo Dilma “deu errado”, o que propor? CARNEIRO & MELLO (2017) propõem que se use parte das reservas externas, por eles consideradas excessivas, para formar um fundo que financiaria vultosos investimentos em infraestrutura.

A ideia de utilizar as reservas para financiar investimentos públicos em infraestrutura já tinha sido apresentada por membros do PT (2016). Apesar de que não haveria, em principio, nenhum problema em usar as reservas para investimentos públicos se de fato elas forem excessivas, usar as reservas sem dúvida podem custar menos ao governo, quando não ocorre desvalorização cambial, pois os juros pagos sobre as reservas externas são baixos . Só que não haveria necessidade de usar as reservas para este fim, uma vez que o grosso dos investimentos de infraestrutura usariam muitos componentes e insumos nacionais e portanto não teriam porque ser financiados em moeda estrangeira, especialmente tendo em vista que assim estaríamos reduzindo nossa margem de segurança contra perturbações externas justo na hora de uma retomada.

Mas esta não é a proposta de CARNEIRO & MELLO (2017). Curiosamente, o texto propõe que as reservas sejam usadas para criar um fundo para financiar investimentos privados em infraestrutura[4].

Este fundo seria usado na compra de debêntures de infraestrutura por parte do Tesouro, que contariam com aportes adicionais do BNDES e dos próprios investidores privados:

Esses títulos, emitidos pelo setor privado, no caso os concessionários dos serviços públicos, constituiriam um ativo seguro, pois além de lastreados no fluxo de caixa dos projetos, devem contar com garantia adicional de fundos garantidores. A sua taxa de retorno, por sua vez, poderia estar ligeiramente acima da Selic.” CARNEIRO & MELLO (2017)

O que nos coloca diante de duas dúvidas. Se os aplicadores ganham mais do que a SELIC, o custo do capital para os investidores não ficaria também “ligeiramente acima da SELIC“? Se for este o caso, resta saber por que os investidores privados vão agora querer fazer investimentos pesados em infraestrutura com este custo do capital. Estes setores não investiram no período Dilma, quando o custo era dado pela antiga TJLP, que era bem mais baixa que a SELIC da época. Propor um caminho que torna os custos financeiros maiores do que a SELIC e acreditar que com isto se materializariam os investimentos privados que não ocorreram no governo Dilma nos parece, no mínimo, duvidoso.

É possível que o fundo aumente o retorno dos ativos do Tesouro, novamente abstraindo de uma grande desvalorização cambial que aumentasse o valor das reservas em moeda local. Porém, salvo engano nosso (que admitimos possa ser o caso, dado o compreensível pouco detalhamento da proposta inicial), a proposta parece encarecer o investimento em infraestrutura privado. Aparentemente, a preocupação em melhorar as contas do governo é maior do que a de baratear o custo do investimento privado – o que nos remete ao tal “espaço fiscal” mencionado acima.

Mas do nosso ponto de vista uma segunda dúvida é que seria a mais importante. CARNEIRO & MELLO (2017) estão propondo novamente o que foi chamado de “investimento autônomo” em CARNEIRO (2017), texto onde se admite que tal investimento simplesmente não aconteceu, apesar de vários incentivos. Por que será que os autores acham que agora iria acontecer? Será que um próximo governo progressista conseguiria finalmente “Arbitrar interesses e definir claramente os segmentos que integrariam uma aliança interclassista” e que isto seria o suficiente para que tal investimento autônomo privado venha a se realizar?

É possível que sim, se os incentivos e garantias do governo agora funcionarem como não funcionaram no passado. Mas, por via de dúvidas, não seria mais fácil – e muito mais garantido – simplesmente retomar dentro do máximo que for possível o investimento público nesta área, e baratear seu custo fiscal paulatinamente, reduzindo a SELIC dentro do espaço possível, diante da situação externa de juros bem mais baixos no exterior? É melhor repetir em parte o que deu certo ou a parte que deu totalmente errado?[5]

Referências

Ricardo Carneiro. Navegando a contravento. TD IE-Unicamp 289, 2017.

Ricardo Carneiro e Guilherme Mello, “O colchão do crescimento”, disponível em https://www.cartacapital.com.br/economia/o-colchao-do-crescimento

Franklin Serrano e Ricardo Summa (2015) Demanda agregada e a desaceleração do crescimento econômico brasileiro de 2011 a 2014. Center for Economic and Policy Research.

Franklin Serrano e Kaio Pimentel (2017) “Será que “Acabou o Dinheiro”? Financiamento do gasto público e taxas de juros num país de moeda soberana”, disponível em www.excedente.org

PT (2016) “O futuro está na retomada das mudanças”. Disponível em http://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2016/02/O-futuro-est—na-retomada-dasmudan–as.pdf

Notas

[1]

O próprio Carneiro (2017) aponta para o fato que a politica de preços adotada pelo governo Dilma reduziu substancialmente as receitas das empresas estatais.

[2]

Carneiro argumenta que “Destaque-se que ao contrário do que postulam alguns autores como Serrano e Summa (2015) a derrocada do modelo, ocorre somente a partir de meados de 2013 e não em 2011 como querem eles. A despeito da consolidação fiscal promovida no primeiro ano do Governo Dilma ter levado à desaceleração do investimento, este se recupera já no segundo semestre de 2012 (nota 4, pagina 4)”. No texto citado, os autores não dizem que o investimento agregado da economia cai a partir de 2011, até porque o conjunto acumulado de politicas contracionistas levou tempo para destruir todas as perspectivas de crescimento da demanda do setor privado e a construção civil. Nosso ponto no artigo é que a mudança do modelo se dá em 2011 pelo abandono do investimento público do governo e das estatais.

[3]

Para uma critica desse tipo de ideia ver Serrano e Pimentel (2017). É importante notar que mesmo para aqueles que acreditam no argumento do espaço fiscal, quando da tomada da decisão de mudança da orientação da política econômica no Governo Dilma I, tanto a dívida bruta quanto principalmente a divida líquida (que na época era apontada como o indicador relevante) estavam em patamares bem mais baixos que no final dos governos FHC e Dilma II.

[4]

Note que se houver a venda sistemática de reservas pelo BC isso poderia ainda gerar uma tendência de apreciação do real, o que traria conseqüências indesejáveis dentro da linha de argumentação do autor, uma vez que este defende que “a apreciação motivou uma elevação substancial do coeficiente importado na manufatura, mormente na indústria de bens intermediaries Carneiro (2017 p.19)”.

[5]

Carneiro(2017) parece atribuir a Serrano e Summa(2015) a ideia de que a desastrosa performance econômica nos governos Dilma seriam inteiramente explicáveis por “erros de politica econômica”. Se demos esta impressão gostaríamos de nos retratar. O que queríamos dizer é que as escolhas de politica
econômica que levaram a estes resultados não foram erros, foram feitas para atender e agradar certos
interesses que não eram favoráveis a um projeto nacional de desenvolvimento com inclusão social.

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