Raízes Industriais da Crise Financeira Asiática e o Enquadramento da Coréia
A crise financeira que em 1997 atingiu profundamente as economias da Tailândia, Indonésia, Malásia, Filipinas e Coréia, colocando em pânico os mercados mundiais, foi acompanhada por uma grande perplexidade. Não se trata apenas do fato de não ter sido antecipada por instituições mundiais como o FMI, BIRD ou regionais como o Asian Development Bank. Também a crise externa da América Latina dos anos 80 não foi antecipada por estes organismos, tampouco a crise mexicana de 1994 foi antecipada. A perplexidade está em seu entendimento. Afinal, relatórios seguidos do BIRD afirmaram ad nauseum a presença nas últimas décadas entre os países asiáticos, precisamente estes ao lado de Formosa e Cingapura, de uma estratégia market friendly caracterizada pela adoção de “saudáveis” políticas macroeconômicas, um genuíno esforço de desenvolvimento baseado na poupança interna e na educação e um apurado sistema de checks and balances na relação entre o setor público e o setorprivado. Este modelo que, segundo o BIRD, era responsável pela alta performance asiática, contrastava fortemente em todos os seus fundamentos como vigente na América Latina com a possível exceção do Chile. Distante do pensamento dominante, economistas estruturalistas apontavam a coordenação dos investimentos, as relações cooperativas nos mercados, os sistemas nacionais de inovação, característicos de economias como a Coréia, Formosa e Japão, como os fatores determinantes da superior performance destas economias.
A crise financeira destes países bem como os planos de socorro financeiro administrado pelo FMI revelaram, segundo a opinião hoje dominantena imprensa especializada, uma realidade toda oposta: a via asiática era, na verdade, a de um crony capitalism e neste, tal como nas análises sobre os ex-países socialistas, a existência de um soft budget constraint empurrou as economias asiáticas para um excessivo endividamento e posterior inadimplência de bancos e empresas. Com efeito, o elemento comum aos diagnósticos do FMI sobre Tailândia, Indonésia e Coréia é o reconhecimento que as características do setor financeiro e suas relações com as empresas e governo como as que prevaleceram nestes países, foram os determinantes principais da crise de endividamento. A base estrutural dos atuais planos de saída da crise, explícita nos programas financeiros geridos pelo FMI, é a liberalização e desregulamentação do setor financeiro. No caso da Coréia esta interpretação segue, inclusive na terminologia, o programa do Structural Impediment Initiative que caracterizou as conversações dos Estados Unidos com o Japão em 1989: segundo o diagnóstico americano, oprincipal obstáculo a uma maior abertura da economia japonesa era a estrutura cruzada de investimentos e compras do keiretsu.
Também no plano atual de resgate financeiro da Coréia, as relações historicamente construídas entre bancos, governo e conglomerados são consideradas como os impedimentos estruturais que precisam ser removidos. Como reconhecem diversos analistas, não há consenso, mesmo entre economistas do mainstream, sobre a política de ajuste macroeconômico e as condicionalidades estabelecidas pelo FMI.
Para muitos, entre os quais Akyüz(1998) e Chang (1998), o viés deflacionista e a dura compressão do crédito condicionados à política de ajuda externa têm conduzido a uma depressão inteiramente desproporcional aos fundamentos da crise. Akyüz (1998) argumenta ainda que as condicionalidades, além de abusivas, foram promovidas por interesses bilaterais dos países desenvolvidos sem qualquer relação direta com a crise. A predominância de aspectos políticos e ideológicos neste movimento de convergência institucional, como o que vem ocorrendo em escala mundial, é inegável. Ontem na América Latina e hoje na Ásia a crise externa das economias periféricas resulta em mais – e não menos como no passado – abertura comercial, maior desregulação financeira e menor controle do estado sobre a economia.
Como uma via de desenvolvimento tão exitosa e celebrada como market friendly foi tão duramente atingida e tão rapidamente passou a ser criticada como a de um crony capitalism? Para um economista “neoclássico heterodoxo” como Krugman (1998), o espetacular crescimento das economias asiáticas não passava de uma previsível trajetória de acumulação de capital em economias atrasadas. Uma combinação de rendimentos decrescentes e falhas de mercado teria levado à redução da lucratividade e ao superendividamento. Segundo Chang (1997) a crise financeira na Coréia deve-se integralmente às opções de política econômica do governo. Uma mistura de valorização cambial, liberalização financeira de fato, ao lado da decisão do último governo dedescontinuar a política de coordenação e regulação dos investimentos que historicamente caracterizou a política industrial na Coréia.
Estas políticas teriam resultado no superendividamento da economia e no excesso de capacidade de diversos setores industriais. Propõe-se neste texto que importantes mudanças ocorreram entre 1995 e1997 na dinâmica do crescimento regional asiático resultando numa maior fragilidade financeira externa. Com a nova paridade entre o dólar e o iene estabelecida em 1995, com a parcial liberalização financeira e valorização cambial que se generalizou entre os países da ASEAN-4 e na Coréia, interrompeu-se em alguns países a macroeconomia do desenvolvimento regional criada em 1985. No caso dos países da ASEAN-4 um aspecto central foi aredução do investimento direto japonês como componente estratégico do financiamento externo destas economias.
A meteórica expansão da China como receptora de investimentos e exportadora de manufaturados deprimiu, nos últimos anos, a competitividade não apenas dos países da ASEAN-4 mas também da Coréia, esta última comprimida entre o seu crescente déficit com o Japão e sua decrescente presença no mercado americano. Da mesma forma que o “milagre asiático” – o excepcional desempenho destas economias nos anos 80 e primeira metade dos anos 90 – não foi uma coleção de milagres, mas um fenômeno regional, como se sustentou em outro texto, argumenta-se aqui que a exaustão do dinamismo dos investimentos e comércio regional baseada na divisão do trabalho construída pelo Japão nos anos 80 e voltada ao mercado americano, enquanto “consumidor de última instância”, está na base da fragilidade financeira externa de alguns países asiáticos.
Como procurar-se-á argumentar na próxima seção, embora a fragilidade financeira externa seja a base estrutural da crise, esta não pode ser reduzida apenas àquela. Do mesmo modo, como procurar-se-á comentar ao final deste texto – uma vez analisada a fragilidade financeira externa na seção seguinte – as reformas estruturais impostas na Coréia como condição à liberalização derecursos do FMI, extrapolam a natureza e os fatores determinantes da crise. Ressalta-se aqui a importância de fatores geopolíticos para o entendimento desta inflexão no padrão de crescimento das economias asiáticas.
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