Golpes e Rumores de Golpes
Imaginar que, no ponto mais baixo de sua força política, um governo tenha meios para “virar a mesa” pela força, implica em desconhecer a lógica inerente ao jogo do poder.
Muito tem sido falado nas últimas semanas sobre a suposta preparação de um golpe de Estado no Brasil. O traço compartilhado pela quase totalidade das especulações a este respeito é a ausência de elementos factuais mínimos para embasá-las. As hipóteses sobre o grau de apoio militar de que disporia o presidente Jair Bolsonaro para alguma ação de ruptura da ordem constitucional, em particular, costumam ser nada mais do que projeções subjetivas e desatualizadas, calcadas no discurso de campanha e nas manifestações de preferência observadas à época das eleições presidenciais de 2018.
Por exemplo, não é incomum encontrarem-se comentaristas que postulam a existência de um elo de soldados, cabos e sargentos que, por se identificarem com o presidente da República, veriam nele seu “único líder” – com a implicação de que estariam prontos a segui-lo sob quaisquer circunstâncias. O fato, porém, é que existe um marcado descontentamento da tropa, tanto nas Forças Armadas, como nas corporações auxiliares (PMs e Bombeiros Militares) em todo o país. Há uma clara percepção, facilmente observável por quem estabeleça qualquer nível de diálogo com as diversas associações de praças existentes, de que Bolsonaro, a quem apoiaram abertamente em 2018, deixou-os para trás e simplesmente não se ocupou dos seus interesses como havia dado a entender que o faria durante a campanha eleitoral.
Esta constatação não quer dizer que se possa evocar qualquer paralelo com as posições dessas categorias em 1964, estando claro que hoje em dia o seu discurso político é marcadamente de direita. Nas polícias estaduais, por exemplo, as principais lideranças são hoje de perfil conservador, a despeito da existência de grupos minoritários de policiais de orientação progressista. Contudo, é incorreto pressupor, como diversos comentaristas vêm fazendo, que essas categorias tenderão a alinhar-se com o governo federal em quaisquer circunstâncias, dado que, a despeito de suas simpatias direitistas, a maioria dos policiais consideram-se traídos pelo governo Bolsonaro, que não estendeu a eles as vantagens conferidas à oficialidade das FFAA.
De fato, atualmente é mais fácil encontrarem-se policiais que, apesar de se identificarem com o discurso político mais retrógrado de Bolsonaro, elogiam publicamente o governador de Minas, Romeu Zema – um empresário conservador, mas com um discurso de tintas “modernizantes” –, dado que Zema passou por cima das fortes restrições orçamentárias do tesouro estadual para dar um aumento de 41% às suas polícias.
De uma perspectiva mais estrutural, é preciso considerar que um golpe, como a própria palavra sugere, é dado por quem tem força para fazê-lo. O governo Bolsonaro, ao contrário, vem se enfraquecendo politicamente desde sua posse, por diversos fatores. Primeiramente, o governo veio se enfraquecendo frente ao Congresso, em relação ao qual estava mal posicionado já no início do seu mandato.[1] A ruptura com o único partido com que podia contar de forma mais ou menos automática, e que fazia as vezes de braço parlamentar do governo, o PSL, tornou crítica essa perda de espaço e fortaleceu grandemente o poder político das mesas da Câmara e do Senado, contra as quais o círculo próximo ao presidente da República hoje se insurge, ao seu estilo, com insultos e tentativas mal urdidas de intimidação.
Neste ponto, é preciso ter clareza em diferenciar objetivos políticos que são específicos e de interesse exclusivo do grupo em palácio de outros que compõem uma pauta mais ampla e que foi inaugurada antes da posse do atual governo. Neste segundo conjunto incluem-se as reformas neoliberais que visam a reduzir direitos trabalhistas e previdenciários, a diminuir o poder de ação de organizações sindicais e movimentos populares, a reduzir a capacidade de fiscalização e intervenção do Estado no domínio econômico, entre outros.
Ao se fazer esta diferenciação, torna-se possível constatar que o alto nível sucesso do governo Bolsonaro em aprovar medidas de sua proposição no Congresso aplica-se somente a essa segunda pauta de medidas pró-empresariais (pro-business) ou, mais tecnicamente, definidas segundo interesses de classe. Por outro lado, no que toca à sua agenda política própria, tanto de cunho mais marcadamente ideológico como as de cunho fisiológico mais restrito (pork-barrel politics), o atual governo vem perdendo capacidade para sua implementação autônoma forma gradual e contínua.
Em segundo lugar, passado um ano de sua posse o governo vem se enfraquecendo junto ao seu próprio eleitorado.[2] Tendo iniciado em fevereiro do ano passado com índices de aprovação (desempenho “bom” + “ótimo”) de cerca de 39%, o governo tem hoje 35%, denotando uma queda para além das margens de erro das pesquisas. Mais significativo, entretanto, é o fato de que o contingente de eleitores que consideram o desempenho do governo “regular” permaneceu estável na casa de 32%, ao passo que a desaprovação (“ruim”+ “péssimo”) subiu de 19% para 31% capturando toda a redução do grupo de eleitores que no início do governo declaravam “não saber” ou que não responderam.[3]
Uma análise qualitativa dos números revela que a desaprovação pode crescer ainda mais, proximamente. Quando o parâmetro usado inclui as expectativas dos eleitores, ou seja o desempenho é avaliado em relação ao que os eleitores declaravam esperar, os resultados são nitidamente mais negativos pois o somatório dos que consideram o desempenho “um pouco pior do que esperado” e “muito pior do que esperado” é de 39%, superando os que dizem declarar o desempenho “ruim” ou “péssimo”. Essas sondagens serão submetidas a um teste de ainda maior relevância caso os dirigentes do governo federal levem adiante o seu intento de convocar uma manifestação pública contra o Congresso Nacional no dia 15 de março.
Um terceiro fator de enfraquecimento do governo tem sido o incremento cumulativo de indícios de associação (direta e indireta) de membros de seu núcleo dirigente a atividades ilegais no estado do Rio de Janeiro, que vinham emergindo paulatinamente como fruto das ligações mantidas por décadas com esquemas e indivíduos notórios na cena policial fluminense. A partir do segundo semestre de 2019, porém, o surgimento de indícios antes desconhecidos ganhou impulso diante da atitude crescentemente hostil de uma parcela expressiva dos meios de comunicação e mesmo de setores do aparelho judiciário e policial que a imprensa chama de “lava-jatistas”.
Acuado por essa trajetória de perda de força política, que inclui até mesmo a possibilidade de incriminação de alguns de seus membros, o círculo mais próximo do presidente está reagindo da maneira mais conforme ao seu estilo: radicalizando seu discurso e apostando na escalada do confronto político. Esta é a cena que testemunhamos no momento.
Nesse círculo interno, contudo, importa notar que o gen. Augusto Heleno é o único militar graduado. A manifestação dos comandos militares feita pela boca do gen. Hamiton Mourão, na sequência das muitas especulações originadas pela indicação do gen. Braga Netto para assumir a Casa Civil, foi clara no sentido de que os militares estão ali para ajudarem a governar, o que, implicitamente, inclui a manutenção da ordem pública e a prevenção da “baderna”, i.e., qualquer manifestação coletiva de vontade popular e quaisquer ações reivindicatórias (sindicais) de maior expressão. Mas ficou igualmente claro que as Forças Armadas não apóiam qualquer forma de ruptura institucional (ações contra os demais Poderes da República) ou de descumprimento egrégio das regras do jogo.[4]
Esta postura (que teve um eco adicional na declaração pública do gen. Santos Cruz condenando a convocação de manifestações para 15/3 pelo governo) é precisamente o que o círculo palaciano quer alterar, forçando uma radicalização do confronto político que deixe os chefes militares sem alternativa senão endossar o radicalismo do presidente da República. Ocorre que, para forçar uma situação dessa natureza, o governo precisaria ser capaz, no quadro atual, de mobilizar a tropa ou as massas populares, ou, mais plausivelmente, ambas, para ocuparem as ruas ao seu sinal. A crença de que o governo Bolsonaro possa ter esta capacidade não tem amparo em qualquer evidência empírica.
Por outra parte, as especulações sobre conspirações a portas fechadas
com líderes militares passam ao largo de um cálculo
político elementar. Com a articulação de diversas candidaturas
sucessórias “palatáveis” aos Estados-Maiores já em pleno andamento
(como as de Moro, Doria e Huck) e a forte possibilidade do surgimento de ainda
outras, está claro que os comandantes militares não têm qualquer estímulo para se
amarrarem a uma única facção ou grupo político nesta altura – ademais a um de
futuro duvidoso. Este estímulo, obviamente, é ainda menor na medida em que uma
tal adesão venha a exigir que as FFAA embarquem
numa aventura incerta de ruptura institucional. Neste sentido, as declarações
que têm sido dadas seletivamente por oficiais generais em nada surpreendem.[5]
Imaginar que está em preparação um
“golpe” capitaneado (sem trocadilho) por Bolsonaro, é desconhecer a
própria natureza desse tipo de movimento político. Dar um golpe de Estado
implica em que quem o promove possa dispor de apoios que lhe propiciem forças
suficientes para superar as objeções e subordinar os interesses de todos os
setores que não estejam com ele diretamente coligados.[6]
Ou seja, exatamente o que o grupo palaciano não tem, hoje.
[1] Raramente se menciona, p.ex., que o partido que emergiu das eleições de 2018 com a maior bancada na Câmara de Deputados foi o PT.
[2] A exceção a esta tendência é, sem dúvida, o núcleo extremista de direita da opinião pública, cujo perfil é majoritariamente de classe média, mas que é minoritário mesmo nesse segmento da população – e ainda mais minoritário no universo de todas as camadas.
[3] Pesquisas CNT /MDA de 21 a 23-2-19 e de 15 a 18-1-2020. Curiosamente, diversos meios de comunicação não submetem os dados a um crivo estatístico apropriado e elaboram suas manchetes exclusivamente com base nas variações em relação à sondagem feita no período imediatamente anterior, desconsiderando o ciclo político e as tendências de longo prazo e prescindindo da análise qualitativa. Como resultado muitos sítios web e jornais noticiaram estes mesmo números como marcando uma ascensão sem precedentes da aprovação do governo.
[4] “Apesar de nós termos a presença de elementos do meio militar […] as Forças Armadas estão fora, na mão dos seus comandantes. E isso a gente tem que deixar muito claro o tempo todo, porque eventuais erros e acertos do nosso governo não podem ser debitados na conta delas.” General Hamilton Mourão, Vice-Presidente da República, 14-2-2020.
[5] Além do General Santos Cruz, vieram a público desautorizar o uso de seus nomes para a propaganda da manifestação contra o Congresso o General Mourão e, significativamente, o próprio General Heleno.
[6] No Brasil, historicamente, trata-se de cooptar de modo mais ou menos impositivo, a adesão do subconjunto relevante dos diversos setores das elites políticas e econômicas locais e, pelo menos, a anuência do governo dos EUA.